Me mudei para São Paulo há cerca de 4 meses, e durante todo esse tempo só tinha uma reclamação quanto à minha vizinhança: um mendigo que dormia perto do portão do prédio onde fica o meu apartamento.
Reclamação porque todos os dias saio cedo e vem aquele cheiro de urina e fezes debaixo daquele cobertor cinza e carregado de moscas. Nem sabia se o cheiro era do mendigo ou de seu cobertor, só sabia que me incomodava. E quando voltava para casa, lá estava ele, estirado no mesmo lugar, dormindo como se não houvesse nada de errado.
Como eu sempre saia cedo e voltava tarde, era difícil ter contato com algum outro morador. Conseguia conversar apenas com o porteiro, de sábado, mas aparentemente minha reclamação nunca ia para frente: ninguém reclamava daquele mendigo, somente eu. Eu achava que ele dizia isso por ser apenas um porteiro que nem morava lá, que entrava e saía do serviço e nunca chegava a encontrar com o trapo humano na calçada.
Minha rotina ainda era estressante, até que consegui uma semana de folga do serviço e podia finalmente colocar meus outros afazeres em dia. E um desses afazeres era ter uma conversa direta com o síndico...
O síndico era um homem gordo, careca e com um grande bigode. Era de voz calma e aparentava ser uma pessoa muito simples. Expliquei o que me incomodava, que aquele mendigo era um perigo para a segurança do prédio, que ninguém havia comentado sobre a presença dele quando eu havia comprado o apartamento. O síndico escutou-me com atenção, disse que entendia perfeitamente minhas razões, porém não podia fazer nada: ninguém mais tinha aquela reclamação.
Para que eu não perdesse meu tempo, ele peguntou as horas que eu costumava chegar, para ver se encontrava o mendigo para proibí-lo de dormir lá. Agradecido, sai como se um enorme peso fosse tirado das minhas costas e dormi tranquilo naquela noite.
No dia seguinte, encontrei-me com o síndico no corredor, e perguntei sobre o mendigo. Nada. Nenhum mendigo apareceu naquela noite. Teria já ido embora? O síndico disse que ficaria de olho aberto e despediu-se de mim, e tomei meu rumo para o elevador. Precisava fazer algumas compras. Nem lembrava mais como era sair daquele prédio sem sentir aquele cheiro horrível no portão.
Acenei para o porteiro e empurrei o portão. Não era possível! O cheiro horrível novamente. Olho para a calçada. Lá estava o mendigo, encostado na parede, coberto pelo cobertor cinza, envolto em sua nuvem mal cheirosa.
Entrei e fui direto falar com o porteiro. Avisei sobre o mendigo. Mandei que chamasse o síndico. Eles tinham que fazer alguma coisa.
"Não tem ninguém aqui" - disse o porteiro, olhando para os monitores de segurança. Teria ele já ido embora?
"Não se preocupe não, moço, que daqui eu vejo tudo que acontece na rua!"
Novamente, mal o portão abriu, senti o cheiro. Olhei para o canto. Lá estava ele, o mendigo. Chamei o porteiro. Demorou um pouco antes dele aparecer.
"Viu o mendigo na rua, moço?"
"Na rua o quê, ele tá aqui!"
"Aonde, moço?"
"Ali, no chão!"
"Não tem ninguém, moço!"
"Como, não tem ninguém se eu tô vendo?"
"Na câmera não aparece ninguém!"
Aproximei-me do mendigo. O desgraçado ainda roncava. Tinha que ser problema com a câmera. Dei um chute para ver se ele acordava.
"Acorda aí, vagabundo, aqui não é lugar de dormir!"
Nada. Estaria morto? Ainda com o pé tentei tirar o cobertor, porém ele não saiu. O mendigo movimentou-se. Ele estava vivo. O porteiro apareceu no portão.
"Achou o mendigo, moço?"
"Olha aí, não tá vendo?"
"Moço... não tem nada aí..."
"Como é que é?"
"Não tem nada aí, moço..."
"Você está de brincadeira comigo, porteiro! Olha o cara aí!"
"Não é brincadeira não, moço..."
"Olha o cara aqui..."
Mal terminei minha frase e uma bola atravessou o corpo inteiro do mendigo, chegando aos pés do porteiro. Um menino veio correndo pela calçada, passou por cima do trapo humano e foi recuperar sua diversão. Não, minto. O menino não passou por cima. Ele passou através, igual a bola.
"Menino... o que você está vendo aqui nesse canto?" e apontei para o mendigo.
"Hum... nada..."
"Como, nada? Não está vendo nada aqui?"
"Não... o que é que tem para ver?"
Agachei e tentei pegar o cobertor imundo, já ignorando aquela brincadeira dos dois. O mendigo teria que ir embora de qualquer jeito. Porém, da mesma forma que a bola e o menino, minha mão atravessou o trapo humano como se não existisse. Levantei rapidamente, encarei o porteiro e o menino e sai em disparada para o bar mais próximo. Eu só podia estar sonhando ou ter bebido de menos...
Continua
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